Roberto Franklin de Leão
Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE/Brasil e Vice-Presidente Mundial da Internacional da Educação – IE
Próxima de completar 70 anos, a Declaração Universal de Direitos Humanos cumpre papel fundamental na luta pelo direito à educação em todo mundo. Contudo, com o passar do tempo, as realidades socioeconômicas dos países mudaram, assim como os próprios objetivos do milênio foram além da declaração de 1948.
A realidade do século XXI exige dos organismos internacionais, bem como dos Estados, uma atualização de suas metas e enfrentamento de contradições desnudadas ao longo da história da humanidade. Ou seja, uma atualização desta histórica Declaração Universal poderia tornar-se importante instrumento de luta para a ampliação de direitos no atual contexto histórico.
Na acepção da DUDH-ONU todos têm direito à educação, e esta deverá ser gratuita e acessível a todos, não importando a idade, o gênero e o local de origem. Mas que educação deve ser oferecida aos povos? Ela atende aos anseios de crianças, adolescentes, jovens e adultos? Esses questionamentos nos levam para além da universalização das matrículas – algo muito importante –, colocando em destaque um aspecto fundamental: a qualidade da educação que temos e queremos.
Neste sentido, o Estado deve garantir não apenas educação para todos, mas educação de qualidade para todos e todas – e aqui devemos incluir não apenas os estudantes, mas também professores e servidores escolares. Esse é um caminho que não poderá ser trilhado sem que os anseios, sugestões, críticas e ideias de quem vive a escola, cotidianamente, sejam incorporados nas propostas e projetos de reformulação da educação voltada para a paz, a inclusão social e a felicidade dos cidadãos.
Em todos os países as questões étnicas, raciais, sexuais e de gênero devem ser vistas com mais atenção. Ainda há países que adotam não só dois tipos de educação, diferenciando homens e mulheres, como impedem mulheres, negros, ciganos, índios, mestiços, entre outras etnias ou devotos de determinados credos, de terem acesso à educação. E isso é incompatível com a perspectiva de inclusão de todos na escola e na vida em comunidade, à luz do respeito aos direitos humanos e de organização sociocultural dos indivíduos e dos diferentes povos.
Outra realidade mundial incompatível com os princípios da Declaração Universal de Direitos Humanos é o tratamento da educação como mercadoria. Trata-se de orientação de muitos documentos internacionais, como da Organização Mundial do Comércio e do Banco Mundial, que colide com a perspectiva do direito de uma educação emancipatória, expresso na DUDH, em benefício de interesses privados e mercadológicos. Por isso, além do reconhecimento da educação como direito, também é necessário fortalecer na DUDH as concepções pública, gratuita, democrática e laica da educação escolar.
No Brasil, em 2009, a Constituição Federal foi alterada para ampliar a obrigatoriedade do ensino regular para todas as crianças e jovens de 4 a 17 anos, devendo ser ampliado progressivamente o atendimento de 0 a 3 anos em creches escolares e a Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores, que no Brasil possui potencial para atendimento de aproximadamente 80 milhões de pessoas que não concluíram o ensino médio.
Contudo, o golpe contra a democracia em curso no país aponta para tempos cada vez mais obscuros também para a educação, pois essa política pública, ao lado de outras, tem sofrido ataques não apenas ideológicos, mas de ordem orçamentária à luz dos mantras neoliberais. Os projetos que visam implementar a “Escola sem Partido” (verdadeira lei da mordaça para o magistério) e o teto para os gastos públicos são da mesma linha que veem a escola como algo inerte. Na verdade, o que pretendem é o fim da educação pública como foi concebida – um lugar de pensamento amplo, que discute não apenas as matérias do currículo escolar, mas o ser humano por completo – social, político, econômico, cultural, sexual. Não querem discutir evasão escolar, o preconceito racial, a violência de gênero, a desigualdade econômica. E isso em nada contribui para a construção de uma escola forte e democrática.
A democratização da escola, com ampla participação da comunidade local na definição do currículo e na escolha de dirigentes escolares é uma questão fundamental e que contribui decisivamente para a qualidade da educação. Pesquisas do Ministério da Educação do Brasil mostram que as escolas que priorizam a participação de sua comunidade nas decisões administrativas e pedagógicas, respeitando o papel dos profissionais da educação, possuem melhores percentuais de avaliação no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – um dos critérios de avaliação nacional das escolas.
Também não se pode ignorar que o direito à educação implica no direito à saúde, à alimentação adequada, ao trabalho, à dignidade, à tolerância e à diversidade. A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem um conceito holístico da natureza humana – somos seres livres, socialmente capazes de tomar decisões compartilhadas e de contribuir para o bem-estar de todos. Na escola que queremos não pode ser diferente. Mais do que o direito a uma educação de qualidade, temos o dever de construi-la.
Por fim, quando pensamos em educação temos que pensar nos profissionais da educação – professores, equipe de suporte pedagógico e funcionários administrativos escolares. As metas para ampliação do acesso universal e melhoria da qualidade da educação passam pela garantia da valorização desses profissionais.
Quando falamos em valorização, não nos referimos apenas a salários – embora essa seja uma questão crucial, uma vez que na maior parte dos países pesquisados pela OCDE a média salarial do magistério é bem mais baixa que a dos demais profissionais com mesmo nível de escolaridade, sendo que no Brasil a diferença é da ordem de 50%. Mas é importante a DUDH incorporar e os Estados implementarem políticas de formação inicial e continuada dos educadores, a gestão democrática na educação, a necessidade de investimento per capita por estudante compatível com as necessidades físicas e pedagógicas das escolas e de aprendizagem estudantil. E compreender essa dimensão ampla e sistêmica da educação é importante para os países atingirem as metas do milênio, combaterem as inúmeras desigualdades em torno da escolarização dos diferentes grupos socioculturais e etnicorraciais e impedirem que a educação seja tratada como mercadoria.
Acreditamos que revisões na DUDH, na linha acima proposta, entre outras que possam se somar a ela, são fundamentais para ampliar a luta social pela educação pública, gratuita, democrática, laica e de qualidade para todos e todas, ao mesmo tempo que propiciará avançar em conquistas sociais ao redor do mundo, pois a educação e os direitos humanos formam uma simbiose e são imprescindíveis para o desenvolvimento das nações e para a realização das pessoas em suas individualidades e em seus grupos sociais.